Helena Del Avecciaya*
Os heterônimos de Fernando Pessoa são mais do que meros pseudônimos, eles são personagens completos criados pelo autor majestoso que por ser tão grande não coube em si só... Não se contentou em ser um único poeta. Muitos estudiosos questionam o por quê de Fernando Pessoa ter criado seus heterônimos. Chegaram a imaginar que o poeta sofresse de esquizofrenia, ou que estivesse psicografando alguém, ou ainda se era uma brincadeira. Bem, o importante é que o autor nos presenteou com tão maravilhosas obras que muitas vezes nos esquecemos de que ele era um homem e passamos a vê-lo como um deus.
Fernando Antonio Nogueira Pessoa (Lisboa, 1888 – 1935) viveu durante o começo do Modernismo, que foi uma época de fragmentação das tendências da literatura. Viveu na época das vanguardas e neste momento de multiplicidade de pensamentos também se multiplicavam, se fragmentava...
Fernando Pessoa introduziu as vanguardas modernistas em Portugal e isto também o levou a ser dividido uma situação muito complexa. O grande escritor também sentiu a necessidade de se dividir para poder expressar suas idéias que eram tantas e tão divergentes uma da outra.
Não há como falar de Ricardo Reis sem falar de Fernando Pessoa.Pois este é o criador daquele. E também não há como compreendê-lo sem falar de Alberto Caieiro,( nem que sucintamente) mestre dos heterônimos.
Alberto Caieiro (1889 – 1915) nasceu em Lisboa e viveu quase toda sua vida no
campo. Sem profissão e sem uma educação formal (teve somente a instrução primária). Seus pais morreram cedo, ficava em casa vivendo com pequenos rendimentos. Vivia com uma tia-avó. Morreu tuberculoso.
Escrevia com uma linguagem simples de um camponês com pouca instrução. Era inimigo do misticismo, procurava se afastar de deus de maneira lógica e coerente.
Se Alberto Caieiro era um camponês autodidata sem nenhuma erudição, seu discípulo Ricardo Reis (1887 –1935) era um erudito que insistia na defesa dos valores tradicionais tanto na literatura quanto na política.
Fernando Pessoa disse: “Ricardo Reis nasceu no Porto. Educado em colégio de Jesuítas, é médico e vive o Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É latinista por educação alheia, e semi-helenista por educação própria”.
Ricardo Reis como discípulo de Alberto Caieiro retorna o fascínio do mestre pela natureza enviesada do Neoclassicismo. Insiste sempre nos clichês árcades do “Lócus Amoenus” (local ameno) e do Carpe Diem (aproveite o momento).
Sendo Neoclássico Ricardo Reis busca o equilíbrio, a “Áurea Mediocritas” (equilíbrio de ouro) Tão prezada pelos poetas do século XVIII. A busca da espontaneidade de Alberto Caieiro se transforma em Ricardo Reis. Deixa de ser uma simplicidade natural e passa a ser estudada, forjada, pelo intelecto.
A linguagem de Ricardo Reis é clássica. Usa um vocabulário erudito, e, apropriadamente seus poemas são metrificados e apresentam sintaxe rebuscada.
Os poemas de Ricardo Reis são “Odes”, poemas líricos em tom alegre e entusiástico, cantados pelos gregos ao som de cítaras ou flautas, em estrofes regulares e variáveis. Nelas convida pastoras como Lídia, Nura ou Cleo para desfrutar dos prazeres contemplativos ou regrados.
As odes de Ricardo Reis, como as de Píndaro, recorrem sempre aos deuses da mitologia grega. Este paganismo de caráter erudito afasta-se da convicção de Alberto Caieiro de que não se deve pensar em Deus. Para Ricardo Reis , os deuses estão acima de tudo e controlam o destino dos homens.
Podemos dizer então que o autor das “Odes” é a vertente neoclássica, racionalista e pagã de Fernando Pessoa. Ricardo Reis, austero e contido, com uma experiência de milênios atrás de si, cultiva a elegância das maneiras, da beleza, do artifício e a arquitetura da ode.
Suas odes também estão permeadas pelo existencialismo de Sartre, pelo Epicurismo, estorcismo e pelo estilo Horaciano.
A proposta deste breve ensaio é “tentar” absorver, analisar, ressaltar... Alguns pontos de uma das odes de Ricardo Reis. A palavra “tentar” foi usada aqui porque seria impossível uma análise. O autor é muito complexo, profundamente rico em estilo e em sentidos para ser analisado aqui. Ele pode ser observado, estudado...
A ode em questão foi retirada do livro “Odes de Ricardo Reis” (Ática; Lisboa –p.59 à 63).
Transcrevemos a Ode:
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.
Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.
Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif'rentes.
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranqüilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.
Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.
A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.
A um primeiro olhar podemos dizer que o poema compõe se de 14 estrofes, dispostos simetricamente. Essa disposição gráfica já demonstra a textura de poema clássico: trata-se, como já foi dito anteriormente, de uma ode. Caracterizada pela simetria e disposição dos versos e das estrofes. Isto é corroborado pelos elementos fônicos: acentuação regular e alternância rítmica dos versos.
Quanto ao nível sintático o poema apresenta duas grandes unidades semânticas: Um jogo de xadrez e a indiferença dos jogadores com a vida fora do jogo.
É o famoso Carpe diem (aproveitar o momento), pois o Chronos – deus impiedoso do tempo - não espera... Logo o tempo trará a morte e mais nada poderá ser feito, aniquilando o jogo e seus jogadores.
O convite do poema para a prática de um jogo muito conhecido: saber jogar corretamente a própria vida, saber aproveitar desta o máximo possível, e será um vencedor quem melhor souber jogar este jogo complexo que é a vida.
O poema exorta o gozo dos prazeres da vida, em vista da efemiridade da existência e da imprevibilidade da morte.
Há no poema micro-unidades semânticas tais como: a continuação da vida mesmo com guerras, mortes e horrores; a sabedoria que consiste em gozar a vida pensando menos possível... por isso o “aproveite o dia” e nada espere do futuro porque este é incerto.
“Que importa a carne e o osso” quando o seu rei está em perigo? (rei – peça do xadrez). Uma das grandes marcas do poema é esta – torno a respeito – a indiferença pelo que se passa na vida, ante o prazer e os perigos de perder no jogo (jogo este que representa a própria vida).
Epicuro está presente com toda sua essência no poema. Ele foi um sábio grego do século IV a.C., que se preocupou principalmente com o problema da felicidade humana. Segundo seu pensamento o homem para ser feliz deve conseguir o estado de “ataraxia”, a ausência de preocupações, e cultivar a justa medida na prática dos prazeres. Então, com isto, percebemos que o poema está marcado muito fortemente pelo epicurismo, tanto é que, Ricardo Reis até o cita em um verso: “Meus irmãos em amarmos epicuro”(...) A moral epicurista é no fundo a tendência para a felicidade, pela harmonização de todas as faculdades humanas.
Reis é fortemente influenciado por Horácio, o poeta que “temperou” a doutrina de Epicuro com a ética estóica. Repetidamente Ricardo reis cita temas puramente horacianos, como no poema em questão. Um dos temas é a fugacidade e a igualdade dos homens perante a morte e outro tema: o gozo dos prazeres da vida. Esses dois pontos temáticos estão bem claros na ode. Reis usa a figura “jogo de xadrez” para abarcar os temas citados.
O púcaro de vinho mencionado na ode é um símbolo que Reis utiliza. O vinho serve para iludir o sofrimento. Porque iludir o sofrimento? Porque se sabe que não há felicidade completa e que diante do sofrimento e do infortúnio devemos compor um sorriso tranqüilo e descuidado.
Os jogadores de xadrez, ainda que ouvissem os gritos das mulheres e das crianças, mesmo que “lhes passasse pela fronte” uma sombra de preocupação, logo voltariam sua atenção ao jogo novamente porque sabem que o destino é imutável.
O que mais atormenta o poeta é que a morte as pessoas perdem a individualidade... Na invasão descrita no poema por exemplo, as mulheres e as crianças se igualavam ao guerreiro invasor por meio da morte. Pois a morte “anula qualquer distinção de classe”, de povos, etc.
O poema em sua totalidade mostra o egoísmo epicurista de Ricardo Reis, um contemplativo extremamente desprovido de calor em seus escritos, incapaz do amor verdadeiro. O autor “parece” existir somente em função de um problema: o problema crucial de remediar o sentimento de fraqueza humana e da inutilidade do agir por meio de uma arte de viver que permita chegar à morte de mãos vazias e com um mínimo de sofrimento.
BIBLIOGRAFIA
D’ONOFRIO , Salvatore. Literatura Ocidental, Autores e obras fundamentais São Paulo, Ática, 1990.
REIS, Ricardo. Odes.Obras completas de Fernando Pessoa. Coleção Poesia. Edições Ática, 1994.Lisboa
PESSOA, Fernando. O Guardador de rebanhos e outros poemas. São Paulo, Cultrix 1997.
Artigo escrito por uma grande amiga minha:
Zisco
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